Você já deve ter ouvido a expressão “o futebol pertence ao torcedor”. A máxima não existe apenas pelo tom poético ou esperançoso, mas sim porque literalmente, em boa parte dos modelos de clubes de futebol pelo mundo, a propriedade do time passa pelos sócio-torcedores serem de fato donos dos clubes.
Mas já faz um bom tempo que isso não é mais verdade: cada vez mais o futebol tem ido das massas para os poucos – os poucos endinheirados, que compram os clubes e usam como mais uma de suas empresas. Pouco importa “o modelo”: podem de fato comprar, chamar de SAF, ou investimento, mas os clubes mais bem sucedidos dos últimos tempos têm todos uma fonte de dinheiro por trás.
E num meio tão tradicional, surge um novo jogador. Um que pode ser mais um no meio de tantos, mas que pode ser também o próximo passo no distanciamento do futebol como conhecemos hoje: a Arábia Saudita.
Nos últimos anos, os planos de sportswashing da Arábia Saudita estão a pleno vapor, com o país instaurando diversas iniciativas na tentativa de ser visto por uma nova luz, e a da vez é a do “país do futebol”. Mas tudo isso vai muito além dele.
Sportswashing
O conceito de Sportswashing – ou lavagem esportiva – se refere à prática de esconder o lado ruim de um país ou governo com o investimento no esporte. E isso não é algo de hoje:
No Império Romano, a prática do “Pão e Circo” consistia em lotar arenas com espetáculos de gladiadores e distribuir comida nas arquibancadas, a fim de distrair a população dos problemas, apaziguar os ânimos da rapaziada, e evitar motins e ressurgências.
Desde então, o sportswashing já foi empregado muitas vezes, e é uma das cartas favoritas na manga de ditadores: por exemplo, é de conhecimento geral que Hitler usou as Olimpíadas de Berlim em 1936 para esconder os problemas do seu regime e divulgar sua propaganda.
A jogada da Arábia Saudita é mais uma em meio às várias ao longo da história. Seu país hoje é mais conhecido por leis autoritárias e datadas – como o fato de que até 2018, as mulheres não podiam entrar em um estádio de futebol – além de violações graves de direitos humanos, como a prática de torturas e intolerância religiosa e de sexualidade.
Mas como eu mencionei, em 2018 as mulheres foram permitidas a assistirem a um jogo de futebol no país, e a mudança foi instigada pelo príncipe Mohammed bin Salman, que curiosamente a fez no mesmo ano em que seu governo assassinou o jornalista Jamal Khashoggi, crítico do governo, que foi visto entrando no consulado saudita em Istambul – e não saiu mais.
Segundo investigações, foi o próprio Bin Salman que ordenou o assassinato, que resultou no jornalista ter sido cortado em diversos pedaços. A advogada Helena Kennedy ouviu e relatou um grampo com uma conversa entre integrantes do “esquadrão da morte” que assassinou Khashoggi:
Hoje, ninguém mais fala desse caso, e o assunto principal quando o assunto é Arábia Saudita é o futebol. Missão cumprida?
Cristiano Ronaldo e os craques
O processo de sportswashing pode ter muitas etapas, mas hoje consiste quase sempre em duas principais vertentes: divulgar o seu país para fora, e melhorar a imagem de dentro dele.
Para divulgar a imagem do país, nada melhor atualmente do que patrocinar clubes de futebol: é assim que em diversas camisas vemos estampadas “Qatar Airways”, “Fly Emirates” e tantas outras. A fim de convidar o público para conhecer o país, o governo saudita também patrocina a Supercopa da Itália e a Supercopa da Espanha, que hoje são jogadas em solo árabe. O jogo é usado como um ponto chamativo para o país, que busca aumentar seu turismo e melhorar sua imagem. Quando a gente pensa no espetáculo, se esquece por um instante de todas as atrocidades ali permitidas.
Uma das grandes iniciativas nesse quesito foi a compra do tradicional clube inglês Newcastle por um fundo de investimento saudita. Por conta do ganho financeiro e esportivo, a torcida saiu às ruas comemorando a compra e agradecendo aos seus novos donos. Enquanto o time for bem esportivamente, não irão haver críticas ao governo. E as atrocidades vão mais um pouquinho sendo esquecidas.
Vale ressaltar que a Arábia Saudita não é a única: em 2008, o fundo saudita de Abu Dhabi comprou o Manchester City, enquanto em 2011, o fundo do Catar comprou o PSG, além de investir pesado no sportswashing, tendo inclusive sediado a Copa do Mundo agora no ano passado. Tudo passa pela mesma estratégia.
Agora que o país foi divulgado, é hora de convidar o público a olhar para dentro dele. O governo saudita investiu pesado nos principais clubes do país – Al-Ahli, Al Hilal, Al-Nassr e Al-Ittihad – para que pudessem fazer contratações bombásticas, e assim chamar ainda mais atenção positiva. E funcionou: com a chegada de Cristiano Ronaldo ao Al-Nassr, nunca a camisa do clube foi tão vendida, e nunca o campeonato foi tão assistido ao redor do mundo.
Para essa próxima temporada, Karim Benzema já foi anunciado no Al-Ittihad – é o atual Bola de Ouro indo jogar na Arábia Saudita, e vários outros jogadores de alto nível estão seguindo o mesmo caminho: afinal, a oferta financeira beira o absurdo, algo em torno de 100 milhões de euros por temporada.
Hoje, a estratégia parece ser a mesma de outros centros alternativos do futebol: contratar jogadores “estrela” já fora do auge da sua carreira. E é verdade que isso também acontece na MLS, dos Estados Unidos – para onde o atual Melhor do Mundo da FIFA, Lionel Messi, foi jogar – e na China, que já também investiu pesado em jogadores no passado.
E falando nele: Lionel Messi é inclusive embaixador do turismo na Arábia Saudita: uma figura famosa e respeitada, paga para sorrir e agir de fachada para encobrir todos os problemas do país.
Mas até quando a estratégia vai ser apenas essa? Quanto tempo até uma oferta dessas convencer um craque ainda em ascensão como Haaland, Vinícius Jr ou Mbappé, e tornar a liga Saudita em mais uma que vai ser difícil a gente não prestar atenção? O Al Hilal chegou inclusive a fazer uma proposta completamente absurda pelo craque francês, com salários e bônus que poderiam chegar a 700 milhões de euros para ter o atleta por apenas um ano.
A ascensão foi tão rápida, que já temos jogadores mais jovens, disputados por clubes europeus, que estão indo para a Arábia Saudita: é o caso de Jota, que havia brilhado pelo Celtic e tinha mercado na Premier League; Rúben Neves, que um dia era especulado no Barça e no outro fechou ida para o Al Hilal; Milinković-Savić, que por anos foi um dos melhores jogadores da Serie A italiana; Brozović, no auge da carreira e que acabara de chegar numa final de Liga dos Campeões; o goleiro Edouard Mendy, que há 2 anos tinha sido eleito o melhor do mundo na posição; e muitos outros.
São tantos nomes, que nós do Euro Fut temos uma listinha com todas as principais contratações pra ninguém se perder.
Planos Maiores
A Copa do Mundo no Catar abriu portas para transformar o maior palco do futebol em algo perverso, longe dos fãs e da tradição esportiva, e cada vez mais próximo do dinheiro.
O grande objetivo da Arábia Saudita por ora é sediar a Copa do Mundo de 2030, com a concorrência tradicional dos trios Argentina, Uruguai e Paraguai; e Espanha, Portugal, e Ucrânia.
Por conta de toda a questão da violação dos direitos humanos, é de se imaginar que jamais aceitariam que a Arábia Saudita sediasse a Copa, ainda mais com a concorrência de países com tradição no futebol. Mas o Catar abriu uma porta que não tem mais como ser fechada. Os movimentos têm sido calculados, e no passar dos próximos anos, a Arábia Saudita será vista cada vez mais como um “novo país do futebol”, com grandes astros e um campeonato assistido do mundo inteiro.
E cada vez mais, o futebol é um pouco menos do povo e mais dos poucos, endinheirados e que podem oferecer baldes de dinheiro para estampar camisas, comprar jogadores, e até clubes de futebol.
A mais famosa liga de golfe do mundo, a americana PGA Tour, aceitou se unir à rival LIV Golf – controlada pelo fundo de investimento saudita – se tornando agora uma só. Existem rumores de que o fundo quer também comprar a Premier League da Inglaterra. Algo que antes poderia parecer impossível, hoje é viável.
A liga de golfe americana não é mais dos Estados Unidos, e se a Premier League inglesa também não for mais do país, o que restará?
O investimento é por todas as frentes: já existe um Grand Prix da Fórmula 1 na Arábia Saudita, e o fundo do país já possui ações em diversas empresas gigantes, sendo hoje por exemplo o maior investidor da empresa de games, Nintendo.
Vale lembrar que o futebol e o esporte não são o objetivo, e sim o meio. O objetivo, como consta no plano “Vision 2030” de bin Salman, é transformar a Arábia Saudita num grande polo mundial, gerando capital político e colocando o país “na mesa da discussão”, junto com outras potências como Estados Unidos e Rússia.
O site oficial do projeto conta com a seguinte frase: “A visão é construída com base em três pilares: uma sociedade vibrante, uma economia próspera, e uma nação ambiciosa”.
É realmente um plano bonito, não fosse a “sociedade vibrante” aquela que possui pena de morte para a homossexualidade, que está severamente atrás nos direitos humanos, e aquela que esquarteja um jornalista por ter pensamentos contrários aos seus.
Parte do projeto inclui criar uma cidade. É isso mesmo: com o dinheiro infinito do país, estima-se que 500 bilhões de dólares serão investidos na criação de uma “mega cidade”, que tem como objetivo ser “o futuro do esporte”.
Hoje, os principais eventos do mundo são sediados em algumas das mais bonitas e tradicionais locações ao redor do globo. No futuro? Se o plano do príncipe funcionar, as competições serão sediadas na “Neom”, uma mega cidade, criada com dinheiro do petróleo e em cima do sangue da tribo Huwaitat, que foi expulsa do local onde vivia por gerações para que o projeto pudesse ser concluído.
Se no país inteiro existem violações de direitos humanos, imagina dentro de uma cidade CRIADA pelo próprio príncipe autocrata?
Mas calma lá, não é possível que as principais entidades do esporte estejam de acordo e permitam sediar as competições num local assim. Pois é: o presidente da FIFA, Gianni Infantino, tem uma relação próxima com o governo saudita, e já até apareceu em uma propaganda para o Ministério do Esporte do país, onde diz que “o mundo inteiro deveria vir à Arábia Saudita para acompanhar o que vem sendo feito”.
Uma outra propaganda se aproveita do embaixador argentino, e diz: “Siga os passos do Messi e visite hoje a Arábia Saudita”.
É tudo, simples e diretamente, uma fachada. Enquanto os clubes sauditas gastam milhões e milhões em contratações escandalosas, gerando atenção e virando os olhos do mundo inteiro para o país, internamente ainda alguns clubes têm salários atrasados por mais de três meses, mostrando que o que importa é a maneira como o mundo vê o país – e não como ele realmente é lá dentro.
O futebol não pertence mais aos torcedores – talvez há muito tempo – e sim ao dinheiro. Daqui um tempo, nós torceremos apenas para times cujos donos são de outros países, e assistiremos a Copas do Mundo em lugares distantes: menos como uma celebração do futebol, e mais como uma grande fachada, comprada como uma versão moderna do “Pão e Circo” romano. Tão bárbaro quanto, mas que na época pelo menos não tentava esconder o sangue derramado.
Artigo idealizado por Rafael Uzunian e Pedro Silveira