Bosman: a lei que mudou o futebol

Pouco mais de vinte anos atrás, um acontecimento mudou o futebol europeu para sempre: quando o jogador Jean-Marc Bosman processa o seu clube em busca de seus direitos, ele desencadeia uma mudança sem igual que, além de dar mais liberdade para os jogadores europeus, acaba criando um efeito dominó e uma desigualdade absurda nas principais ligas europeias.

Aqui vamos falar de tudo que envolve a Lei Bosman e como ela mudou o futebol para ser o que é hoje.

Jean-Marc Bosman

Foto: Reprodução

Para explicar a Lei Bosman é necessário falar do cara que dá nome a ela, Jean-Marc Bosman. E para um jogador ter mudado a história do futebol, dá para imaginar que um craque de bola, não? Mas nada disso:

O Bosman era um meia belga que jogou no Standart de Liège pela maior parte da sua carreira, mas é difícil dizer que alguém além dos torcedores do clube conheciam ele nessa época. Em 1988 ele vai para o menos conhecido RFC Liège, e lá não dá pra gente dizer se jogou bem ou não porque a verdade é que a gente não sabe muito do que ele fez dentro do campo, e sim fora dele.

Isso porque em 1990 o seu contrato com o time belga acaba, e ele acerta a sua ida para o USL Dunkerque da França. Só faltava combinar com o RFC Liège, que não quis liberar o jogador.

Mas pera aí, o contrato dele não tinha acabado?

O futebol antes de Bosman

Foto: Standart Liège

É aí que entra como funcionava o futebol europeu antigamente: quando um clube contratava um jogador ele adquiria o passe dele, o que basicamente significava que eles eram donos daquele atleta, e ele só poderia jogar então pelo seu clube. O contrato então era meio que algo a parte, ou seja, um vínculo empregatício por um número X de anos com um valor Y de salário e que era necessário para ele poder de fato jogar as competições pelo time, já que eram jogadores profissionais. Então o passe garantia a compra do jogador, enquanto o contrato oficializava o salário por um número determinado de tempo.

A verdade é que em cada lugar a regra era um pouco diferente já que cada país tem suas próprias leis, mas de maneira geral era assim que funcionava.

Então quando o contrato do Bosman acabou, ele negociar com o Dunkerque não adiantava de nada se o RFC Liège não liberasse. O Liège pediu um valor que era muito alto pro pequeno Dunkerque, que então desistiu do jogador, melando a negociação.

Nisso o Bosman não podia jogar, porque não tinha contrato, e nem sair, porque o passe era do Liège. Com todo o poder em suas mãos, o clube então oferece um novo contrato com uma redução de 75% do salário para o jogador, já que ele “não tinha escolha” a não ser aceitar.

Mas diferente dos outros o Bosman não aceitou esse contrato, e como tal acabou sem jogar mais para o clube e sem poder sair – ah, e sem também receber. 

Depois de um tempo ele até chegou a começar em outros clubes como o Saint-Quentin da França, mas lá ele não jogou por muito tempo. A verdade é que poucos clubes queriam se meter nessa confusão toda, então o Bosman fazia parte ali de uma “Lista Negra da Europa” e não conseguiu mais seguir a sua carreira profissional.

Lei Bosman: a decisão que mudou pra sempre o futebol

Sua decisão mais importante foi então na justiça, quando ele vai para a Corte de Justiça Europeia e processa o RFC Liège, a Federação Belga – já que ela ficou do lado do clube e não dos jogadores – e a própria UEFA pelos mesmos motivos, num processo judicial que, como sempre, demorou bastante tempo. 

É aí que entra um ponto importante: um dos argumentos de seus advogados era o Tratado de Roma, assinado em 1957 pelos países da Comunidade Europeia – hoje União Europeia. Entre vários pontos, o tratado prezava pela liberdade de europeus de transitarem e trabalharem em todos os países da União Europeia, então a ideia era que a decisão do clube em barrar a ida do Bosman para a França seria uma violação desse acordo.

Em 1995 o processo finalmente chega ao fim, e a decisão é em favor do Bosman, criando assim a “Bosman Ruling”, ou em português a Lei Bosman. Ela decidia que segurar um jogador sem contrato era ilegal, e portanto toda essa ideia de “passe” foi pro espaço, agora valiam apenas os contratos.

Isso permitiu que os jogadores pudessem escolher seus próximos clubes e ter mais controle sobre sua própria carreira, uma mudança gigante para o futebol. Vale lembrar que essa mudança é válida para a Europa, mas em outros continentes e países leis similares tiveram o mesmo propósito, como por exemplo a Lei Pelé no Brasil. 

Só que lembra o argumento da liberdade de trabalho em países da União Europeia? Isso acabou também interferindo em outra coisa:

Até aquele momento, um time europeu só poderia ter cinco jogadores estrangeiros em seu elenco para um jogo de competição europeia – para a liga de cada país a regra variava, mas era algo em torno disso mesmo. A regra era na verdade 3+2: você poderia utilizar três estrangeiros, mais dois se esses dois fossem da suas categorias de base. Fora isso, têm que ser jogadores do seu país. Era o caso por exemplo do “Milan dos Holandeses”, que tem esse apelido muito porque os seus três holandeses, Rijkaard, Gullit e Van Basten, eram os únicos três estrangeiros da equipe, o resto sendo todos italianos e aí eles se destacavam bastante por isso.

A Lei Bosman mudou isso, já que o julgamento decidiu que esse limite prejudicava a liberdade dos trabalhadores europeus em países estrangeiros, e assim esse limite foi embora. Os jogadores de fora da europa ainda são considerados estrangeiros, mas os europeus não, e essa mudança revolucionou o futebol como a gente conhece.

Qual o impacto da Lei Bosman?

Foto: Arsenal

Mas e o que mudou de fato com a Lei Bosman? Bem, a que motivou o processo trouxe a primeira mudança: sem o passe, um jogador poderia agora assinar com outro clube assim que seu contrato acabasse. 

Primeiro, isso trouxe uma maior liberdade para os jogadores. Além disso, deu a eles maior poder de negociação: como o clube não precisava mais pagar um valor pela compra do jogador sem contrato, eles podiam exigir um valor muito maior em salários. Isso ficou exemplificado muito bem pouco tempo depois, com a ida do zagueiro Sol Campbell do Tottenham para o Arsenal de graça, graças a Lei Bosman, e sendo o primeiro jogador a receber 100 mil libras por semana no país, outro impacto direto da lei.

Segundo, é nessa época em que começa a aumentar a demanda para os famosos agentes de jogadores. Até esse ponto eram os clubes que negociavam tudo, até porque o jogador não tinha o que fazer. Com o maior poder de decisão veio a necessidade de ter alguém ajudando com essas questões financeiras, e assim os agentes foram virando figuras cada vez mais importantes no mundo do futebol. Então se hoje a gente tem os chamados “super agentes”, que mandam e desmandam no esporte, é muito por causa da Lei Bosman.

E agora devido à outra faceta, não ter o limite de jogadores estrangeiros foi outro componente que mudou demais o futebol europeu. Por exemplo, se antes a Premier League era composta de maioria inglesa, não demorou muito para os estrangeiros dominarem ela, algo presente até hoje.

O lado ruim da Lei Bosman

Foto: PSG

A combinação das duas acabou criando um abismo gigantesco entre os clubes grandes e os médios da europa: podendo sair para qualquer clube, os jogadores vão claro escolher não só os times grandes pelo lado esportivo, mas porque eles podem oferecer os maiores salários. Assim, começou a existir uma concentração de craques em times como o Real Madrid, Barcelona, Bayern entre outros, que cada vez mais ricos mais tinham um elenco melhor, ganhavam títulos, ficavam mais ricos e conseguiam contratar mais craques – vários deles inclusive “de graça”, aí sobrava dinheiro e por aí vai.

Um exemplo bem recente: chegando no fim do seu contrato, Mbappé ficou com todas as cartas na mão para decidir o seu futuro, com times como o Real Madrid dispostos a enviar rios de dinheiro para contar com o jogador. Mas mais do que isso, o Mbappé resolveu ficar no PSG, já que seu aumento salarial o tornou o jogador mais bem pago do mundo.

E o Real que é outro gigante não fica de mãos abanando não, pois recentemente também contratou o Rüdiger de graça, e na janela anterior havia chegado o Alaba. Sem precisar pagar valores de transferência, o Real pôde usar esse valor em outros jogadores, como o Tchouaméni, e aumentar ainda mais a diferença de elenco para os outros times da europa. Virou uma briga de gigantes, e os médios e pequenos não chegam perto de conseguir competir.

Antes da Lei Bosman, a Champions League era bastante disputada por clubes de diversos lugares da europa, já que os craques de seus países normalmente ficavam por lá mesmo. Pegando ali um período de 10 anos antes da Lei, de 1985 até 1995, a Champions havia sido vencida por clubes de 7 países diferentes, sendo alguns deles mais alternativos como o Steua Bucareste da Romênia e o Estrela Vermelha da Sérvia.

De 1995 para cá são 28 edições de Champions vencidas por apenas times de 5 países diferentes: Espanha, Itália, Portugal, Inglaterra e Alemanha, ou seja, a concentração de craques tá toda nessas principais ligas da europa e não mais dividida como antigamente.

É lógico que não é o único motivo: a competição ter mudado o formato e ter hoje mais times de cada uma dessas principais ligas ajuda a evitar essas zebras, mas ainda assim, claramente o que tirou a competição foi essa disparidade e não o número de vagas. 

Jean-Marc Bosman

Foto: FIFPro

E depois disso tudo, como ficou o próprio Bosman? Mesmo que tenha causado uma revolução no esporte, não dá pra dizer que como jogador ele se deu bem não: durante o período do processo ele roda alguns pequenos clubes, mas nunca se firma e meio que dá para dizer que sua carreira acabou ali mesmo em 1990, quando não assinou com o Liège. Quando vence o processo ele ganha um dinheiro de compensação, mas que é muito pouco comparado com o que os jogadores começaram a ganhar logo depois da Lei Bosman.

Hoje o Bosman tem dificuldades financeiras, muitas vezes sem trabalho, e quando tem é ganhando algo perto de um salário mínimo, longe dos contratos milionários que ele ajudou a tornar realidade.

Eu tenho orgulho da Lei porque ainda vão falar dela por muitos anos, talvez até quando eu não esteja mais aqui. Talvez eles pensem que devessem me agradecer, só isso.

Jean-Marc Bosman

Essa é a Lei Bosman, que revolucionou o futebol, elevou o patamar dos principais jogadores da Europa, e criou esse abismo gigantesco entre os principais times para o resto. Uma mudança que era necessária, mas que acabou resultando, talvez, em um problema ainda maior.

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Rafael Uzunian
Rafael Uzunian
Coordenador do Euro Fut, roteirista no YouTube, sofrendo com Santos e Arsenal.
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