Existem diversos motivos para apontar o Ajax como um clube modelo para todos os outros do mundo. Mas além de detalhes de infraestrutura e gestão, é notável um elemento mais “superficial” e ainda de extrema importância: a coerência na contratação e utilização do seu elenco.
Seria mais fácil ver os melhores momentos recentes dessa equipe — como na Champions da temporada 18/19 e nessa temporada atual 20/21 — como lampejos, mas a verdade é que em quase toda peça do seu elenco existe um planejamento, uma contratação que foi pautada em motivos pré-estabelecidos e que são seguidos à risca pela diretoria.
Planejo aqui apenas, de maneira rasa, analisar algumas dessas facetas:
1. Jong Ajax e a utilização da base
A primeira é a característica mais relacionada ao Ajax: a formação de atletas. Um estudo recente mostra o Ajax liderando a lista de jogadores das 31 principais ligas europeias formados em sua base (81) e ainda em 15º no ranking que leva em consideração apenas as cinco principais ligas (20). Essa posição mais baixa não deve surpreender, afinal a liga holandesa não é considerada uma das cinco, e é justamente lá onde estão concentrados os jogadores da base do Ajax.
Dos 11 titulares da campanha de 18/19, seis deles foram formados no clube: De Ligt, Blind, Mazraoui, De Jong, van de Beek e Onana, que fez quase toda sua base no Barcelona, mas se tornou profissional na Holanda.
Por mais que seja hoje um clube vendedor, a formação passa também por colocá-los em situações de alta competitividade desde cedo, e esse estímulo é essencial para seu desenvolvimento. Desses, o De Ligt saiu para a Juventus, de Jong para o Barcelona e van de Beek para o Manchester United, todos por grandes valores.
Então eles vão torrar esse dinheiro em estrelas, certo? No lugar do zagueiro De Ligt, hoje joga o jovem Timber. No lugar do de Jong, Gravenberch, ambos da base. A fábrica de meninos continua, e se engana quem pensa que as reposições não são à altura.
2. O mercado norte e sul-americano
E quando tem que contratar, a solução acaba muitas vezes vindo do mercado americano, com soluções baratas e normalmente promissoras em jogadores que chegam para já fazer a diferença.
Em 18/19, o elenco contava com o Tagliafico — recém contratado do Independiente da Argentina — além do David Neres, jóia da base do São Paulo, onde se destacou antes de ir para a Holanda.
Hoje, tem Lisando Martínez que veio do Defensa y Justicia, Edson Alvárez do América do México, e Antony, outro jogador da base do São Paulo.
A coerência é tanta que dá pra combinar facetas em algumas delas: o jovem Danilo, que estava na base do Santos, foi contratado pelo Ajax para terminar lá sua formação, e hoje é mais uma promessa revelada pelo time. Assim como Sergiño Dest, jogador norte-americano que foi para o Ajax bastante jovem, revelado pelo time e hoje no Barcelona.
Nota-se também que o mercado americano não é uma regra: hoje os jovens Daramy e Kudus, vindos da liga dinamarquesa, fogem à ela mas seguem os mesmos princípios.
3. O grande da Holanda
É nessa hora que vale salientar que as excelente estratégias do Ajax não são utilizadas como um “recurso emergencial” ou algo do tipo. O Ajax é o maior vencedor holandês e portanto um dos clubes com maior atrativo no país, e a terceira faceta parte da contratação de jogadores que se destacam na própria Eredivisie.
Do time de 18/19, o volante Schöne havia vindo do NEC Nijmegen, enquanto Hakim Ziyech foi contratado depois de se destacar pelo Twente.
Hoje, têm o goleiro Pasveer vindo do Vitesse e Steven Berghuis que se destacou no Feyenoord antes de chegar ao time.
Alguns outros jogadores também entram nessa faceta (como Labyad), porém tentei focar em jogadores com ampla minutagem ou titulares em potencial.
4. Negócios de oportunidade
Todo time contrata jogadores por oportunidade de mercado, e o Ajax não é exceção. O mais impressionante, pra mim, é como elas são sempre pautadas pela coerência.
Antes da temporada 18/19, a principal contratação havia sido a de Dusan Tadic, vindo do Southampton. Precisando de uma estrela, o Ajax poderia ter tentado repatriar Cristian Eriksen ou outro jogador que viria de um clube rico e custaria caro. Pelas circunstâncias do time inglês, Tadic custou apenas 13 milhões e 700 mil euros: pouco para quem se tornou o líder técnico e hoje é capitão do time.
E aqui a lógica: antes dos Saints, Tadic se destacou pelo Twente, quando foi artilheiro e levou o time à terceira colocação do campeonato holandês, com o Ajax ficando de olho nele desde então. Quando houve a oportunidade, foi fácil decidir.
O outro é Sebastian Haller, um dos artilheiros da equipe. Foi oportunismo pois ele foi para o West Ham por 50 milhões de euros, não foi bem, e depois de apenas uma temporada e meia saiu para o Ajax por 22 milhões e meio de euros: menos da metade do valor!
“Mas a contratação foi só por isso?” Não! Assim como o Tadic, seu primeiro destaque veio também na Liga Holandesa, em três ótimas temporadas pelo FC Utrecth. De novo a coerência.
Conclusão
Pera aí, não daria tecnicamente pra pegar todo clube de futebol, colocar quatro facetas e dizer que é coerência? Bem, acredito que não. Vamos pegar o Barcelona. Usa a base, mas recentemente deixou muitos jovens irem embora enquanto contratava jogadores medíocres para suprí-los. Quando recebeu o dinheiro do Neymar, as contratações imediatas foram caras, pautadas pelo “temos dinheiro, vamos gastar”. Hoje, quebrado, suas contratações baratas não são estratégia, e sim “não temos dinheiro, então não vamos gastar”.
Então voltando ao Ajax, seguindo essas características TODA contratação dará certo? Não, mas os sinais são muito positivos e a taxa de acerto do clube é muito, muito alta mesmo, e a engrenagem do Ajax não dá sinais de parar.